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Academia Brasileira de Letras exibe filme “A Carta de Esperança Garcia” em lançamento nacional

Mulher preta escravizada do século XVIII que lia, escrevia e sabia articular-se em seu universo.

Equipe apresentando o filme na ABL

Equipe apresentando o filme na ABL

14 de junho de 2024 às 14:10
15 min de leitura

A Academia Brasileira de Letras recebeu o cinema piauiense para a estreia nacional do filme “A Carta de Esperança Garcia”, com roteiro e direção de Douglas Machado. A escravizada que resolveu denunciar os maus-tratos de um patrão tirano, que a tirou do convívio de sua família com marido e filhos pequenos, segue repercutindo depois de 253 anos.

Equipe apresentando o filme na ABL

A primeira exibição pública aconteceu no Theatro 4 de Setembro, em Teresina, em 7 de março de 2023. Outras apresentações aconteceram em cidades piauienses, como Oeiras e Floriano. Onde o cineasta foi premiado com a melhor direção no 18º Encontro Nacional de Cinema e Vídeo dos Sertões, no último domingo, 9, também pela “Carta”.

A carta de Esperança Garcia

Achados e Perdidos

Esperança Garcia é um grande achado do pesquisador paulista, Luiz Mott, que também é professor, escritor, antropólogo, historiador e sociólogo. Decano dos ativistas pelos direitos civis de LGBTQIA+. Escrita em 6 de setembro de 1770, a carta sobreviveu até 1979, quando foi encontrada no arquivo público do Piauí, Casa Anísio Brito. Em 1985, foi reunida entre outros fatos na publicação “Piauí Colonial: população, economia e sociedade”.

Douglas, Gardênia, Zezé e Catarina

O grande achado está perdido. Ninguém nunca mais a viu. Por ser um objeto pequeno, muito antigo, com conservação sofrível, até hoje não foi encontrado em meio a muitos outros com formato idêntico, entre caixas e mais caixas. Porém, a carta foi fotografada por Paulo Gutemberg. A busca já teve momentos mais intensos. Ainda não desistiram de encontrá-la, mas também consideram que possa ter sido extraviada.

Além da carta, que não há nada que confirme que a emissária tenha sido atendida diretamente em suas queixas, Esperança é reencontrada documentalmente em 1778, numa relação de escravos da Fazenda Algodões. Juntamente com o seu marido, Ignácio, que estava com 57 anos e era angolano. Esperança, com 27, tinha retornado para casa.

Primeira advogada

A cópia foi o suficiente para abrir um movimento a fim de reconhecer o valor e a importância daquela mensagem. A carta de Esperança Garcia ao presidente da província de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, denunciando as violações impostas pelo capitão Antônio Vieira do Couto, configura como a primeira petição a uma autoridade, o que a identifica como uma advogada. Dela, das companheiras e do filho pequeno, que também era agredido.

A Dra. Sueli Rodrigues (em memória) idealizou e conduziu todo o processo de reconhecimento. Durante dois anos, coordenou os trabalhos da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-PI, que redigiu o dossiê e justificou o título de primeira mulher advogada do Piauí, em 2017. O Conselho Pleno da OAB Nacional a reconheceu como a primeira advogada do Brasil, em 25 de novembro de 2022.

Depois vieram bustos, homenagens, concursos artísticos, grupos, nome de prédio público, instituto, medalha, revista em quadrinhos, peça teatral, músicas, filmes. E segue sua trilha de resgate ancestral de uma mulher escravizada, espancada, que resistiu e lutou por si e pelos outros. Colocou tudo no papel, redigido à mão. Numa caligrafia de punho livre e libertador. Com claros sinais de quem tinha intimidade com as letras, a pena, o tinteiro e o mata-borrão.

Lia e escrevia

1759. A data mudou a vida dos jesuítas, da educação brasileira e de Esperança Garcia. A perseguição promovida pelo Marquês de Pombal expulsou os religiosos de todas as terras portuguesas, motivada por conspiração contra a Coroa. Na verdade havia naquele momento a rivalidade entre o Iluminismo e o catolicismo. A ordem clerical estava muito rica. Os desbravadores ganhavam terras e as deixavam aos sacerdotes quando morriam. Tinham muitas posses e glebas gigantescas.

Todas as datas que identificam a idade de Esperança em sua curta linha do tempo historiografável estão na listagem de trabalhadores escravizados da Fazenda Algodões que, após a reincorporação à Coroa Portuguesa, as propriedades passaram a ser chamadas de Fazendas Nacionais. Era 1778. Aos 27 anos faz a gente calcular que a menina tinha apenas 8 anos de idade quando seus alfabetizadores foram expulsos e sua vida entrou em declínio.

Os jesuítas eram os grandes responsáveis pela educação brasileira. São muitos os casos historiografados de lideranças indígenas e pretas que foram instruídas pelos mestres, que usavam de uma pedagogia eficiente. Com a queda deles, a colônia passou à decadência no ensino. O projeto para substituí-los, “Aulas Régias”, desenvolvido por Pombal, não vingou. Os filhos dos fidalgos ficaram vulneráveis. Abrindo espaço à maçonaria, que articulou sua forte presença no sistema educacional.

Garcia teve a primeira de suas crianças aos 16 anos. Aos 27 já eram 7 filhos. Em 1770, quando redigiu o seu destino, a Dra. Esperança tinha apenas 19 anos. A instrução que recebeu dos padres foi fundamental para o desfecho. Ler era para poucos. Escrever, para menos ainda. Ela desenvolveu uma narrativa muito clara, direta, objetiva, concisa. A jovem tinha total consciência do que fazia ao apelar à autoridade máxima da província.

A capital, Oeiras, em linha reta, estava a menos de 10 léguas de Nazaré, cidade que incorporou o que restou da localidade. Eram exatos 59 quilômetros. Se o chefe maior da administração não pudesse fazer nada por seus apelos, quem poderia? Escrever a carta escondida foi uma ação muito audaciosa. Arriscada. Perigosa. Enviá-la sem levantar suspeitas deve ter sido bem engenhoso. Ao denunciar a crueldade, Garcia indicou o quanto era corajosa. Ela só queria justiça.

Os filmes

Em novembro de 2021 foi lançado o primeiro filme sobre nossa primeira advogada. “Uma mulher chamada Esperança”, longametragem dirigido pelo cineasta oeirense, Flávio Guedes. Foi exibido em Picos, Oeiras e Teresina. O longa está disponível no YouTube há 1 ano e já tem quase 7 mil visualizações.

O doc de Douglas encontrou uma fórmula para tecer várias trajetórias de mulheres pretas, que dialogam entre si, identificando suas lutas e bandeiras com as de mulheres que desbravam como Esperança. Abrindo um novo verbo ao vocabulário: esperançar. Com significado mais tonificado. Indicando uma conjugação que orienta quem luta contra forças muito poderosas, que exige estratégia, força e coragem.

Zezé Motta e Tina Ribeiro

Dividido em 4 partes, com Tina Ribeiro, Chitara Sousa, Catarina Santos, Luiza Miranda e Regina Sousa, unidas e reunidas por Zezé Motta, que as entrevista. As trajetórias são contadas. Todas muitos ricas. Suas sensações são divididas. Mulheres pretas de grande conteúdo, que desenvolvem atividades diversas e todas muito significativas, cada uma em sua grandeza.

A narrativa traz experiências muito fortes. A visita à fazenda com pelourinho e outros objetos de tortura, com grilhões enferrujados que acorrentaram muitas mulheres como Esperança é uma delas. Zezé vai à frente. Numa sequência tensa, é impossível não sentir um incômodo. O filmaker conseguiu evocar a sensação de mal-estar. Em algum momento as imagens vão gerar a sensação desconfortável e a reflexão.

Não era apenas uma. Eram milhares. Por elas não havia quem as defendesse, quem pudesse denunciar os abusos. Garcia surge num cenário improvável. Uma mulher preta escravizada do século XVIII que lia, escrevia e sabia articular-se muito bem em seu universo. Indicando claramente que não havia nenhuma diferença entre pretos e brancos. Qualquer tentativa de racismo foi pulverizado na ação de uma jovem mulher.

Movimento Negro Unificado marcou presença
Carta traduzida

Escrita em português arcaico, com termos em desuso, que dificultam o entendimento, foi criada uma “tradução” para o português dos tempos atuais. Revelando traços mais angustiantes de uma realidade de grande violência. Os fatos indignam a qualquer pessoa que a leia. Infelizmente, de 1770 para hoje, pouca coisa mudou.

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal.

A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V. Sa. sua escrava Esperança Garcia.”

Academia de cinema

O cineasta Douglas viveu uma semana de estreias no Rio de Janeiro. Primeiro foi o lançamento na cinemateca do Museu de Arte Moderna do novo corte de “Cipriano”, lançado há mais de 20 anos. Com a releitura o filme passa a ser chamado de “Cipriano e a Morte de Cipriano”. Um filme que é literatura. Sua estrutura nos traz a força dos sertanejos. A morte sempre vem cobrar o que é seu. O ar misterioso tem uma proposta estética aguda. O mais emblemático entre os filmes da obra de Machado.

Na noite de ontem, DM rompeu muitos bloqueios. Alguns invisíveis. A invisibilidade de nossa arte é um deles. Quando aparecemos por nossas habilidades e talentos artísticos, a Academia Brasileira de Letras exerce uma simbologia muito significativa. A “Carta” entre os imortais é mais uma vitória de Esperança, que retira o véu da invisibilidade piauiense no centro agregador e difusor da Cultura e Arte brasileiras.

Gardênia Cury e Douglas Machado

Agora o longa entra em circuito nacional. Inicialmente, já estão acertadas a distribuição em várias salas em Curitiba, Recife, Belo Horizonte e o Rio de Janeiro, fechado na manhã desta sexta-feira, 14. A tarde e noite de ontem na ABL foi um momento glorioso. As protagonistas, o cineasta e sua equipe foram recebidos pelos acadêmicos para o Café das 5, com toda a pompa e circunstância.

A exibição aconteceu com apresentação inicial dos realizadores, que expuseram a construção do filme. Durante a exibição, foram aplaudidos. Ao final, os acadêmicos aplaudiram novamente por longos minutos. Os envolvidos voltaram para mais conversa, esclarecendo os melindres das filmagens. A dimensão que Esperança tomou mostra a envergadura de seu feito. Merecidamente, o tapete vermelho foi estendido para a história de uma mulher extraordinária.

O cineasta comentou com a reportagem que o fato tem significância histórica. O filme traz um emblema que reforça a luta que ainda se desenrola. O racismo e a violência contra a mulher são pautas do dia a dia que ganham um olhar encorajador de uma heroína que fazia isso há mais de dois séculos e meio. Os simbolismos confluíram para a casa do preto que foi enbranquecido durante muito tempo. O Bruxo do Cosme Velho deve estar bem feliz com a visita de Esperança.

Douglas, que deve ter algum parentesco com o fundador da casa, Joaquim Maria Machado de Assis, a considerar o sobrenome, quebrou muitos paradigmas de uma vez só na noite de ontem, 13. Dia de Santo Antônio. Santo casamenteiro. Que seja uma união frutífera. Esperança tem a capacidade de promover justiça. O cinema piauiense na ABL nada mais é que a projeção da circulação de nossos bens culturais em um nível mais rigoroso e elevado. O Brasil precisa ver o Piauí na telona. Vamos esperançar!

Cenas do documentário A CARTA DE ESPERANÇA GARCIA.


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