Coluna Lugar de Fala

Roda de Conversa: Douglas Machado entrevista Maneco Nascimento e João Vasconcelos

Montagens que participaram são parte da construção da coluna que sustenta uma época.

Roda de Conversa sobre teatro - Foto: Willian Tito

Roda de Conversa sobre teatro - Foto: Willian Tito

24 de maio de 2024 às 22:58
23 min de leitura

Chegamos ao epílogo de noites de alumbramento, como gosta de dizer o criador do Roda de Conversa, Douglas Machado. A exposição que festeja os 130 anos do Theatro 4 de Setembro, que acontece daqui há 4 meses, reposiciona a iniciativa privada no ambiente artístico-cultural. Ao plantar um Espaço Cultural em setor de grande circulação de um shopping, inovou.

Roda de Conversa sobre teatro - Foto: Willian Tito

As temáticas desenvolvidas, pertinentes, contemporâneas, necessárias, trazem todo tipo de consequência. Dos aplausos volumosos aos comentários de ódio doados pelos intolerantes. Machado recordou quando teve que fechar sua conta no instagram. Devido aos discursos de preconceito quando realizou Roda de Conversa sobre a pauta transgênero. Enfrentou a turbulência na rede social com o engajamento de viés negativo. Passado mais de um ano, continua com o IG restrito. DM ressaltou que receber o apoio da administração do shopping foi super importante para superar o fato.

Cineasta Douglas Machado - Foto: Willian Tito

Gosto de empregar o artigo masculino quando menciono o Roda de Conversa. Na redação publicitária, é um apelo efetivo para acender as luzes do destaque. O projeto. O evento. O momento. Se fosse com o “a”, seria apenas uma roda de conversa e não O Roda de Conversa. A sintaxe e a semântica podem rivalizar no reino da gramática, no caldo transgressor da linguagem são gêmeas xifópagas.

Os dois entrevistados na noite também se assumem irmãos, de almas. Se existir outras vidas, certamente tiveram encontros diversos. Apesar de alguns desentendimentos, também compreendem que têm maturidade suficiente para superar e reformar o relacionamento, que cresce. João Vasconcelos e Maneco Nascimento são dois veteranos do palco, da direção, da produção e sinônimos de bem culturais que vingam, se os seus nomes estiverem associados.

João Vasconcelos, Conselheiro Estadual de Cultura - Foto: Willian Tito

A chegada foi premiada com a presença festejada do grande ator e diretor, Paulo Libório, que normalmente mantém-se recluso. Com raros momentos em que sai de casa para eventos de particular interesse. O mestre recebeu o carinho da plateia, traduzido em cumprimentos e pedidos para fazer fotografias. Muitos cliques.

A Cena Vestida de Poética

O tema traduziu a noite final de bate-papo sobre teatro. Com exposição de fotografias que são quase painéis (pela dimensão), objetos de cena, figurinos, acessórios e publicações sobre um recorte de grande riqueza dramatúrgica, faltava a encenação. Não faltou mais. A poética da cena veio para o diálogo, pontuando os momentos conduzidos pelo entrevistador. Atrizes e atores rememoraram seus textos em montagens de clássicos do teatro produzido no Piauí.

João e Maneco já brilharam muito no sacro tablado do nosso teatro. E continuam brilhando. As montagens que marcaram suas épocas fazem parte da construção da coluna que sustenta o fazer teatral dos dias de hoje. Eles são a ligação entre dois momentos, atravessando juntos o período transitório. Estamos falando de uma cobertura presencial de quase 45 anos que une um período de grande e qualitativo fluxo de produção de montagens.

Vasconcelos, entre outras habilidades, é empreendedor cultural desde a década de 80, quando montou o Café da Seis e passou a servir comida, bebida e arte, no Centro da Capital. Em seguida veio o Elis Regina, passando pelo Bar do Club dos Diários, entre outros espaços até chegar no Trama Cultura. Seus bares/restaurantes/casas de shows foram fundamentais para a circulação de bens culturais de diversas linguagens, com produção e financiamentos totalmente independentes.

Nascimento é um estudioso, intelectual, de grande produção de textos diversos. São inúmeras resenhas críticas que registram a produção de praticamente tudo que veio à cena na velha casa de espetáculos nos últimos anos. Poeta, letrista, cronista, dão sinais de sua intimidade com a palavra. É praticamente um filólogo mergulhado em seus volumosos compêndios e códices raros. A imagem que me vem quando vizualizo o Maneco é de um escriba medieval, que leva sua atividade como um monge beneditino, elaborando suas obras de arte traduzidas em livros produzidos artesanalmente.

Ator, diretor e jornalista, Maneco Nascimento - Foto: Willian Tito

No princípio era o verbo

Na semana passada, a atriz Bid Lima chegou depois do início. Dessa vez foi o JV que deixou o Maneco começar sozinho. Era 19h13 quando Douglas Machado pediu um sonoro aplauso de pé, em que foi plenamente atendido, para Paulo Libório e Assaí Campelo, que enriqueciam a plateia. Machado aproveitou e contou episódio durante as gravações de “A Carta de Esperança Garcia”. Sempre citando o encontro com Assaí, DM informava às suas protagonistas. Elas achavam que seria a hora da merenda, com uma bela tigela de açaí. A surpresa bateu de frente com um senhor grisalho e cabeludo, gerando a piada.

João Vasconcelos, Douglas Machado e Maneco Nascimento - Foto: Willian Tito

MN começou dizendo que estava com a mesma sensação de estreia, tendo na plateia diversos colegas com quem contracenou. Levantou-se para saudar o Mestre Libório, que foi seu primeiro acesso ao teatro, em grupo formado na antiga Escola Técnica Federal do Piauí. Hoje, IFPI - Instituto Federal do Piauí. A visível emoção estava decantada na voz embargada e olhos marejados.

Entretanto, seu primeiro contato foi com o teatro de circo. As encenações de picadeiro encantaram o menino para sempre. Maneco complementou que as radionovelas também exerceram grande influência sobre ele. A fantasia construída apenas com vozes, música e efeitos sonoros o marcou profundamente. Daí também veio o fascínio pelo rádio e pelo jornalismo. Os atores de telenovelas concluíram o sonho da interpretação, dos enredos, das super produções. Na escola, Nascimento era lembrado pelos professores quando precisava de alguma encenação, recitação de poemas ou apresentação. Já nasceu performático.

Antes de embarcar propriamente na cena, MN relatou momentos que carimbaram sua escolha ao assistir teatro, que frequentava regularmente. A montagem de “A Guerra dos Cupins”, de José Afonso de Araújo Lima e direção de José da Providência, pelo Grupo de Teatro Pesquisa - GRUTEPE. A interpretação de Arimatan Martins como ator para o “O Princês do Piauí”, de Benjamin Santos e direção de Tarciso Prado. A ambientação com o universo artístico de Teresina se fortaleceu com o clima divertido da Feirinha Cultural, que acontecia aos domingos, na Praça Conselheiro Saraiva, no Centro da capital. Onde MN era figurinha fácil.

Até subir a ribalta pela primeira vez, fez duas oficinas com gigantes da cena. Os diretores Celso Nunes e Amir Haddad. Ambos octagenários, com Amir em plena atividade com sua mais recente montagem, a festejada “Zaratustra”. Nascimento estreou na peça “Pavão Misterioso”, do parnaibano Benjamin Santos, sobre homônimo cordel clássico da poesia popular nordestina. Nascimento incorporou-se em longas temporadas nos grupos Raízes e Harém, participando de diversas montagens.

A atriz Lari Salles, que era entrevistada na semana passada, veio da plateia interpretando personagem da obra do campomaiorense Francisco Pereira da Silva, em “O trágico destino de duas Raimundas ou os dois amores de Lampião antes de Maria Bonita e só agora revelados”. Da tetralogia Raimunda Raimunda, a composição de Raimunda Borborema encenou com um olho de isopor, que fez as vezes de Virgulino. A força da cena tingiu de comédia, com a firmeza de um personagem trágico, que tem um humor ácido.

Participação de Lari Salles - Foto: Willian Tito

A novela da vida

Vasconcelos, que compõe o Conselho Estadual de Cultura, eleito pelas entidades que representam e defendem os interesses dos artistas, também já presidiu o SATED-PI - Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão. Não tem o hábito de se atrasar. Muito pelo contrário, sua pontualidade é britânica. Uma contingência o fez perder o horário. Mas foi por pouco. Era 19h16 quando apareceu. Três minutinhos depois da abertura.

O encontro com a arte veio com a televisão. As telenovelas globais viraram a cabeça do menino, em Beneditinos, cerca de 80 quilômetros de Teresina. Era 1972, a cidadezinha no norte do Piauí devia ter no máximo uns 10 televisores. Um deles, o da casa da Dona Zezé, comadre da mãe, era o ponto de acesso do garoto.

A primeira versão de “Selva de Pedra”, de Janete Clair, com direção de Daniel Filho e Mílton Gonçalves, deixou o jovem João obcecado pela novela. No elenco, Francisco Cuoco, Regina Duarte, Dina Sfat, Arlete Salles, Carlos Vereza, entre outros grandes deuses da telinha. Em seus últimos capítulos, mesmo com febre, proibido de sair de casa, vestiu uma camisa sobre a outra e fugiu para assistir seu capítulo imperdível. A mãe foi buscá-lo muitas vezes. A orientação religiosa imposta pela família entrava em conflito com o que o jovem amava. Ver novela era pecado. Não teve jeito. Pelo contrário. A proibição aumentou o interesse. É sempre assim.

Já em Teresina, onde veio morar para estudar, viveu um momento de desilusão. Um anúncio de curso de cinema o atraiu. O suposto momento de qualificação era a grande oportunidade para realizar o desejo de entrar no mundo da cena. Era golpe. Acabou perdendo o suado dinheiro da matrícula e viu seu sonho mais distante.

No Theatro, viu o premiado ator Paulo Libório em cena. Tomou-o como referência de atuação. Ele tinha acabado de chegar de badalado festival de teatro em São José do Rio Preto, São Paulo, com a montagem do espetáculo “A Fala do Rio”, de Ramsés Ramos. O encanto da encenação reacendeu a vontade de estar no palco, que tinha ficado latente.

De uma oficina com a atriz Lorena Campelo, estreou a peça da mineira Maria Clara Machado, “Pluft, o Fantasminha”, com os colegas de cena Cláudia Amorim e Antoniel Ribeiro. Foram 12 anos no Grupo Raízes. A montagem de “Tiradentes, 200 anos”, foi um dos pontos áureos de sua trajetória. Até entrar para o Harém, chegando como contrarregra de “Raimunda Pinto, Sim senhor!”, passando a ser presidente do grupo.

O artista recordou ainda dos espetáculos lítero-musicais que produziu e dirigiu, como “Tributo para Elis”, com mais de uma dezena de edições. Com todas as dificuldades que teve que superar em sua trajetória, se tivesse que começar tudo de novo, Vasconcelos afirmou que faria do mesmo jeito. Foi a vez de Bid Lima, atuar interpretando a personagem de “O Caso do Vestido”, sobre a obra do poeta Carlos Drummond de Andrade, com direção de JV.

Cenas da vida real

Douglas questionou JV sobre o que há em comum entre o dono de bar e o diretor de teatro. João respondeu que “tem tudo a ver”. Sua experiência na administração de empresas do ramo da alimentação e diversão, juntadas ao traquejo em lidar com artistas foram basilares para ser gestor de um Centro Cultural. Vasconcelos rememorou a programação que contemplava todos os dias da semana, bancando alguma atividade que movimentava a cena artística, quando assumiu o comando do bar do Club. O ator acentuou que trabalhou e trabalha pela valorização do produto cultural desenvolvido aqui, lançando um olhar especial e promovendo-o.

Para Maneco, Machado indagou “O que interfere o ator no trabalho do diretor e vice-versa?”. Nascimento começou dizendo que toda informação conta. Quando vai compor um personagem, o ator também é diretor, à medida que constrói num processo dramatúrgico, participando do resultado final do encenador. Da mesma forma, o diretor aponta os sinais no processo de edificação da cena e personagens, orientando sob o ponto de observação de quem vai elaborar os tipos. Para MN, são complementares.

Sobre o espetáculo com a cantora Luiza Miranda, que interpretava as cancões do poetinha, não só dirigiu como atuou, fazendo o grande letrista da Bossa Nova. MN observou que viu a necessidade de adicionar a presença física encenada de Vinicius de Moraes, que antes estava previsto apenas intervenções de leituras. Deu certo e deixou relevância em sua carreira.

Das composições de personagens mais marcantes em sua história, Maneco ressaltou “A Casa de Bernarba Alba”, onde interpreta uma mulher. E outra de um membro do sinédrio, em Paixão de Cristo dirigida por Bid Lima. Em ambas, conseguiu dificultar o reconhecimento de si durante a cena. O fato das pessoas se surpreenderem com seu desempenho o envaidecia, considerando que ele alcançou a magia que atinge a plateia quando vê o personagem e não o/a ator/atriz. “É a cereja do meu bolo”, disse quando não o reconhecem.

Foi a vez de Amaury Jucá e Marcel Julian fazerem a cena do costureiro Orly e seu assessor Eduardo Carlos, que se passa na fase de Raimunda Pinto em Paris, como manequim de alta costura. A cena para lá de hilária divertiu a todos. Jucá recordou que o ator inicial que compôs o personagem foi o humorista Dirceu Andrade.

Marcel Julian e Amaury Jucá - Foto: Willian Tito

Palco iluminado

Provocado por Lari Salles, MN relatou um momento histórico que viveu no 4 de Setembro. Depois de se desentender com a direção de um espetáculo há uma semana da estreia, abandonou a montagem. Pensando em se vingar, ficou aguardando o substituto na orelha do palco (os dois lados da boca de cena que se projetam nas laterais). Quando o ator ia entrar no palco, adiantou-se e começou a dizer as falas. Foi tão bem na cena que recebeu parte do figurino do titular. Ao concluir, saiu pela porta principal da casa e foi se embora. A ideia teria partido do ator Wílson Costa, que tinha planejado a vingança junto com ele. A pontuação veio com o autor Vitorino Rodrigues, que interpretou poesia de Salgado Maranhão.

Ator e diretor Vitorino Rodrigues - Foto: Willian Tito

Machado perguntou a JV se os artistas piauienses dão muito trabalho e são polêmicos, quando estão com suas pautas no Theatro. Vasconcelos garantiu que “Os artistas piauienses não são polêmicos”, arrancando risadas da plateia. Porém, recordou da apresentação do cantor e compositor Tiago Iorc. A produção, depois de humilhar os gestores da casa negando cortesias, resolveu ceder 30 pulseirinhas. Uma autoridade cultural que estava presente não recebeu e disse que não precisavam e não iam assistir, gerando um climão.

Bid e Janá Silva fizeram trecho de “Porcos”, montagem do Grupo Capenga, com direção de MN. O produtor Magalhães, que chegou com a entrevista já quase no final, foi aplaudido por seus relevantes serviços prestados ao investir e produzir grandes espetáculos de artistas de renome nacional, como Roberto Carlos, que trouxe em várias oportunidades.

Bid Lima e Jane Silva em cena de "Porcos" - Foto: Willian Tito

Sobre os fantasmas no Theatro, Douglas repetiu a questão que tinha feito na conversa da semana anterior. JV declarou que “Por quem já partiu, nunca. Mas eu sou assombrado todos os dias.”, disse em tom de galhofa. A anedota rendeu gargalhadas. João, falando sério, lembrou que o ator Ademílton Moreira sempre vê. Inclusive de alguém que ele supõe ser o diretor José da Providência. E foi mais de uma vez. Pedindo a confirmação de Maneco, que também assentiu.

Nascimento falou que em certa oportunidade, em Brasília, no Teatro Dulcina de Moraes, ele não viu, mas seu irmão, Jorge Carlo, passou por uma situação que se encaixa. Ao sair de cena, quando apresentavam a peça “Raimunda Pinto”, passou por uma pessoa e teria batido o lenço nos bastidores no suposto colega. Questionado pelo irmão, MN disse que não tinha ninguém. O encontro não foi com gente do elenco. Não desta dimensão.

Final apoteótico

A poetisa Flávia Nascimento, quebrando o protocolo, recitou poema de sua autoria sobre o Theatro e a Cultura piauiense. DM registrou a presença de sua cunhada, Marília, casada com seu irmão, Marden, que também é do cinema e moram em Curitiba. Machado revelou ainda que a dupla de entrevistados da semana passada era para ser incialmente composta por Lari e Assaí Campelo, que desistiu faltando poucos dias para o início da exposição.

Douglas revelou que as impressões de fotografias feitas especialmente para o evento serão doadas ao Theatro. Ele ainda incentivou que hajam novas exposições, com novos recortes e outros formatos. Vasconcelos aproveitou para convidar a participação colaborativa de uma nova exposição prevista para acontecer na Galeria Nonato Oliveira.

O cineasta, dirigindo-se a mim, questionou o porque de meu interesse em escrever crônicas sobre os encontros de artistas promovidos pela curadoria da exposição para o Lupa1. Respondi dizendo que além de serem todos meus amigos, eu vivi grande parte do que está exposto, inclusive com três grande fotos que foram selecionadas. Concluí dizendo que o pensamento do artista sempre me interessou, mas são raras as chances que temos acesso. Disse ainda que entrevistas de grandes artistas conduzida por um cineasta só poderiam ser interessantes, o que aguçou a minha curiosidade.

Antes de terminar, fui convocado a dar uma palhinha, provocado por DM e JV, que lembrou de um show musical em que me apresentei no bar Elis Regina. Fui passar a minha vergonha no crédito. Sem nenhuma preocupação de julgamento. Era 20h38 quando Machado encerrou confessando sua grande alegria pela noite de muitas manifestações que enriqueceram os que estavam presentes. Nós é que somos gratos pela promoção de encontros gloriosos. Vida longa ao Roda de Conversa, aos artistas e ao Theatro 4 de setembro!

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